domingo, 24 de maio de 2009

Liberdade = Ser

O sol começou a surgir, e ela está um pouco cansada, suas vistas estão turvas, o dia foi muito intenso e ela não conseguiu adormecer. O seu trabalho exige muito dos seus olhos e da sua percepção, ela ler e traduz documentos de séculos passados. Sua rotina de trabalho é ditada por demandas mensais, ela arbitra a hora do trabalho, desde que a meta mensal seja alcançada.
Ela está no seu quarto, olhando o céu através da janela. É uma atitude atípica e sem saber o porquê ela permanece em pé, pouco se importando com o cansaço físico que a acomete.
A vista que tanto a prende não é da natureza bucólica, muito menos de casas luxuosas, condomínios da alta classe ou palácios de shakes, é a vista suburbana, da periferia social, do terceiro mundo. Casas amontoadas, terminadas ou em construção, vielas, muitas vielas, nada planejado, mas ela não se importa com isso, pois cresceu nessa atmosfera pouco assistida e repleta de dinamismo, que tanto pulsa sobrevivência.
O que a inquieta? Ela permanece em pé perscrutando-se, tentando dar forma ao que lhe mexe. Só pode encará-lo quando ele se agigantar e ganhar forma dentro de si. Ela levou toda a noite tentando encontrá-lo e quando o sol já resplandece no céu, com uma luz invasora, ela reconheceu o que tanto lhe mexe: é a prisão, a impotência em todas as suas dimensões possíveis. Não consegue nem se quer mover um membro, parece que toda a energia do seu corpo está sendo consumida pela sua mente faminta. Ela só consegue mexer os olhos, pois eles são o espelho da paisagem que a cerca.
A prisão onde se encontra é multifacetada, e ela percebe que vai além da sua impossibilidade de se mover, a paralisia corpórea que a domina só lhe permite sentir com intensidade o estado cataclísmico que se encontra, que sempre esteve, e nunca se dera conta. Então, ela compreendeu que poucas vezes abritara por si. A biologia da vida tratou de tomar o seu rumo, ela nasceu e como qualquer ser humano estava em curso de sua vivência, no entanto, é de outra vida que ela se ocupa, da vida em sociedade, a verdadeira prisão.
A moral dos bons costumes, os códigos de conduta social, os ditames da mídia, o termômetro da sociedade, a privacidade perpetrada pelo direito de costume dos abastados, a hispocrisia e a mesquinhez imperante permeiam as relações no locus social. E , assim, ela se viu em completa prisão, e deu por si que não fez parte da construção de nada daquilo, que apenas ingessou tudo em si mesma. A sensação que a tomava foi semelhante a um gesso num membro quebrado, limites para que o membro não faça qualquer movimento, calor, incômodo com a coceira inevitável e desconforto. O aconselhável é que se resigne e assuma uma entre duas opções: apatia por cumplicidade ou apatia por indiferença. Decerto, o seu membro estará curado, o seu lugar comum no mundo está assegurado.
Todavia, ela, no fundo de si, não queria e nunca quis a prisão da apatia. Incomoda-lhe tamanha estupidez, tanto sofrimento circundante e a insuportável indiferença instalada. Por que? Por que justamente ela? Talvez devido a um pequeno exagero na dose de sensibilidade quando estava sendo formada no útero de sua mãe, talvez porque a imuno-indiferença-social adiquirida não se fez tão eficiente. O fato é que ela caiu em si, estava no limbo.
Os raios de sol já queimavam a sua pele e o seu corpo já demonstrava fraqueza, ela mal se sustentava paralisada, entretanto, sua mente não obedecia a fragilidade bioquímica da sua máquina, ela queria levá-los, o consciente e o organismo dela , a um estresse máximo, quase insuportável. Só que que ela ainda não tinha se encontrado consigo, permanecia em cataclisma, não sentia a liberdade pulsar e emanar de dentro si.
Ela estava prestes a ter uma síncope, até que algo mudou em sua fisionomia, não transparecia a perplexidade de segundos, minutos e horas atrás, parece que reside ali uma expressão de leveza. Será que ela se sente livre? Será que, enfim, provou de si mesma?
O momento exato da liberdade não é e nem pode ser capitado por qualquer ser humano, pelo menos, até então, não viu nada relatado nos inúmeros livros que leu, nem nas experiências que colheu de alguns amigos próximos. Ela nem se quer tinha capacidade de descrever ou narrar o que ocorria consigo. Suas capacidades não se apropriavam desse inapropriável. Jamais, a liberdade torna-se-ia privada, jamais! É factível criar-se barreiras, limites para que a liberdade não encontre terreno fértil, mas torná-la propriedade, certamente, é impensável e inconcebível.
A moça sentiu a leveza tocar a sua pele e sem pressa começou experimentar os seus movimentos, embora expressasssem dor no seu corpo quase molestado. Sentia que os efeitos de tudo que passou durante a noite e parte da manhã viriam por todo o tempo que lhe resta de vida.
Ela pensou. E pensar desencadeou uma sensação de conforto nunca experimentada, era uma leveza infinita. Nesse momento, ela provou com furor a primeira das infinitas capacidades que ganharia com a liberdade que a acometia. Evidente que também provaria com mais intensidade todas as maldades e indiferenças do dia-a-dia de um sobre-vivente-terráqueo, no entanto, era livre e podia ser, sempre.
Sabia que esbarraria com monstros e se sentia apta a viver com dignidade. Sabia, também, que teria que aprender a lhe dar com os seus próprios monstros, e isso não a assustava, porque nessas lutas compreendia o quão importante é se estar bem acompanhada. Ela iria se abater com a dor dos que não podem se defender e, nesses casos, a sua responsabilidade no assunto não seria negligenciada.
Ela estava lavada, embora estivesse em cacos.
Era quase meio dia, um sol lindo, um céu muito azul, o mundo lá fora pulsava. Ela se sentia senhora de si, livre, responsável pelo que desejasse ser, estar, experimentar. Então, foi dormir, com fome e com sede. Com sede de ser.


Fonte da imagem: http://pt.artmajeur.com/0/images/images/kimmolinero_3164145_2006_03_-_5000__O__Acr_papel_400g_40x50_-_Mulher_S

3 comentários:

Jéssica disse...

Perfeito!

Tão Clariciano.

Ruan Alcantara disse...

"Sentia que os efeitos de tudo que passou durante a noite e parte da manhã viriam por todo o tempo que lhe resta de vida.
Ela pensou. E pensar desencadeou uma sensação de conforto nunca experimentada, era uma leveza infinita."

É por isso que eu quero estar sempre com você. Primeiro pq vc tem sido ótima nesses quase 6 anos, e nesse último então... Mas em fim, espero que os efeitos do que pensou esteja religiosamente ingessados em nós... Rezo para que o que pensamos possa dar certo; e rezo para nós mesmos.

And "God" blessed in our travel..

Ruan Alcantara disse...

Ah sim...bela personagem que criou...rs...só pra constar!